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25 de setembro de 2009

ARDIL

Durante 12 anos a espaçonave Kashimire, o orgulho da humanidade, navegava solitária pela vastidão da galáxia, visitando os mais remotos locais. Provida de um gerador de dobra tão avançado quanto poderoso, ela podia saltar de um canto a outro do espaço conhecido sem a necessidade de reabastecimento ou paradas. A bordo, um solitário astro-físico era sua única tripulação.

Lazarus Quaid tinha diversos motivos para sentir-se solitário. Não apenas dentro do expoente da engenhosidade humana que aquela espaçonave era. Quaid tinha sérios motivos para crer que era o último ser humano vivo.

Há 12 anos atrás, em seu último retorno à Terra, ele havia encontrado o planeta completamente vazio, com sinais de conflitos em lutas por toda parte. Não havia como saber exatamente o que ocorreu durante sua ausência de 3 anos, onde cumpria uma missão de grande importância realizando a vistoria in loco do 15º planeta extra-solar com chances de se tornar a primeira colônia terrestre.

Sem ninguém para recebê-lo, Quaid se afundou em desolação, pensando quão triste era o fato de que, após milhares de anos, a humanidade finalmente poderia realizar um de seus sonhos mais antigos só agora, em sua extinção. O planeta vistoriado não só era habitável como possuía uma biosfera rica em nutrientes e oxigênio, além de água líquida, temperaturas amenas e vegetação abundante. Mas isso não tinha a menor importância agora.

Quaid passou 2 meses no planeta Terra em busca de sinais de vida humana. Estranhamente não encontrou um cadáver sequer. Não havia como obter informações sobre o que havia ocorrido pois todos os sistemas de notícia e informação encontravam-se severamente avariados. As cidades estavam abandonadas, e tanto a vegetação como os animais selvagens já estavam adiantados em sua ocupação das ruas, prédios e casas. A Terra era selvagem uma vez mais, e havia naquilo uma beleza mórbida de paz.

Quaid não gostava de se lembrar daqueles dias na Terra, porque após meses de buscas inúteis, acabou ficando catatônico. Chegou à beira da morte por inanição dentro de sua velha espaço-nave, a Orion Hawk 7. Mas algo dentro dele não o permitiu morrer. Ainda tinha muito o que ver e descobrir. “Ainda não quero morrer”, pensou, fraco após dias após sem alimentação. “Ainda existe um humano para viver, e sonhar”.

Saindo da órbita terrestre Quaid encontrou a Kashimire intacta, atracada à grande doca espacial que ficava em órbita geo-estacionária sob o Pacífico. O local estava mais silencioso do que qualquer outro que ele havia visitado. Não haviam corpos, nem sinais de luta. Era como se todos tivessem simplesmente desaparecido.

Os sistemas automáticos das instalações ainda funcionavam com exatidão, e acoplar sua nave ao complexo fora extremamente fácil. Investigando os registros no diário da estação, viu que as últimas entradas eram relativas a mais de dois anos atrás. No último dia havia o registro de uma nave militar que se atracaria para reparos. Depois disso, nenhuma informação havia disponível.

Após alguns preparativos, Quaid abandonou as fronteiras terrestres a bordo da Kashimire no dia 27 de agosto do ano de 2487. Olhou o planeta morto uma ultima vez, e então mirou seus olhos para frente, vislumbrando as estrelas assim como os humanos o faziam desde os tempos mais remotos. Com a diferença de que agora, de certa forma, ele poderia tocá-las.

Durante todos aqueles anos Quaid viu coisas que julgava que nunca veria em sua vida. Vislumbrou corpos celestes sugados por buracos negros, formações de super-novas que destruíam sistemas estrelares inteiros, estrelas binários e planetas gasosos se desfazendo em colisões planetárias indescritíveis, ocasionadas por desequilíbrios gravitacionais de milhões de anos. Ele vivia pelo amanhã, e não tinha nenhuma esperança de encontrar outro ser humano em vida.

Certo dia, sem se dar conta, Quaid acabou retornando a um ponto da galáxia aonde já havia estado. Ele havia concebido uma fórmula matemática que proporcionava saltos aleatórios pela galáxia conhecida sem repetir locais visitados, o que lhe daria lugares a visitar por milhares de anos.

O fato é que ele havia estado ali não com a Kashimire, mas sim a Orion Hawk 7. Quaid estava diante do planeta que havia vistoriado ha mais de 12 anos atrás. Esboçou um sorriso, e considerou a possibilidade de voltar a caminhar por aquele lugar. Sem compromissos ou esperanças, decidiu ir a superfície.

Embicou a Kashimire em ângulo de reentrada e a pousou em uma planície estável recoberta com capim macio no hemisfério sul do planeta, que era semelhante à própria Terra em tudo, menos na disposição continental e na proporção terra seca/água. Lá, a água exposta não era tão abundante quanto na Terra, mas haviam enormes lençóis freáticos, com muitos pontos aonde a água pura e cristalina brotava do solo.

Já na superfície, Quaid sentiu a luz solar tocando seu rosto de uma maneira agradável. O azimute que a estrela apresentava no céu lhe dizia que estavam no período da manhã do que devia ser o outono naquela região do planeta. Caminhou pelo lugar com um prazer que há muito tempo não sentia. Considerou nadar em um lago que havia próximo ao local. Sua beleza natural era a coisa mais próxima da perfeição que ele jamais vislumbrou antes.

Sua paz, porém, fora interrompida por um sinal de alerta da Kashimire, obrigando-o a desistir do lago. Voltando à espaçonave, ficou quase tão abalado quanto 12 anos atrás. A Kashimire informava a existência de estruturas não naturais no hemisfério norte do planeta após sua varredura, proporcionada por 18 sondas atmosféricas que lançou automaticamente ao entrar na atmosfera.

Quaid sabia que, por estruturas não naturais, devia-se entender qualquer coisa que não tivesse origem geológica ou biológica, como montanhas e vegetação. Algum animal nativo poderia ter construído um abrigo grande o bastante para chamar a atenção, como os diques que os castores construíam na Terra. Mas também poderia ser algo produzido por uma mente humana.

Quaid não queria dar continuidade ao seu pensamento. Não queria trabalhar com suposições, mas sim com fatos. Não pensou duas vezes para levar a Kashimire até o local, para ver a tal estrutura com seus próprios olhos.

Lá chegando, não podia acreditar no que via. Pousou a nave a vários metros de distância, e foi até aquilo caminhando sem acreditar, porém, de arma em punho. Diante dele levantava-se, no topo de uma pequena colina coberta de grama, um casebre de madeira e pedra, com chaminé e até mesmo uma cerca. Pelas janelas, Quaid observou o interior do local, e viu móveis velhos dentro dele. Entrou. O lugar parecia desabitado há muitos anos, com uma grossa camada de poeira recobrindo tudo.

Sem conseguir assimilar aquilo com facilidade, Quaid ficou mais estupefato ainda vendo que, sob uma mesa no canto do casebre, haviam 5 objetos. Um pente, uma escova de dentes, um espelho, uma faca e... um controle remoto. Já há muito tempo que os controles-remoto haviam deixado de existir na Terra, sendo que o próprio Quaid só os havia visto em museus.

Pegou o controle nas mãos, limpando-o com cuidado. O botão de ligar/desligar era vermelho e grande. Foi natural apertá-lo para experimentar a sensação. Antes não o tivesse feito. Recebeu instantaneamente uma descarga que o fez perder os sentidos rapidamente.

Quando acordou, viu-se nu e preso pelas mãos, pendurado em um recinto escuro que não demorou para identificar como sendo a área de cargas de uma espaçonave mal cuidada. O local era estranhamente familiar. Uma comporta se abriu depois de alguns minutos, e Quaid sentiu o pavor mais terrível percorrer sua espinha com uma fúria incontrolável de adrenalina e outras reações metabólicas. Um ser humanóide horripilante se arrastou para dentro do lugar, com seus olhos vermelhos de pupilas dilatadas, e uma boca cheia de dentes afiados como a boca de um verme intestinal macabro.

A criatura o observou por alguns instantes de maneira apavorante, totalmente imóvel. O silêncio só era quebrado por sua respiração pesada e pelo som das batidas do coração de Quaid. A criatura então se moveu com movimentos curtos, rápidos e de baixa amplitude, ficando mais ofegante ainda, salivando em demasia. Mesmo magra, parecia totalmente bestial. Começou a falar com uma voz sussurrada e quase demoníaca, e para espanto de Quaid, na mesma língua que ele.

- O último dos humanos! Enfim posso me alimentar novamente...
- Se alimentar novamente?! O que diabos é você?
- Compreendo que não saiba o que sou... poderia dizer que sou um humano assim como você? Não... já há muito tempo isso me foi tirado...
- Humano?
- Eu conheço você e sua história, Dr. Lazarus Quaid. Mas você não me conhece, tão pouco sabe o que sou. Não estava na Terra quando aquilo aconteceu.
- O que?
- A estupidez humana, o que mais? Sou o resultado de um projeto secreto dos cartéis do sul. Sou um ser humano manipulado com vacinas genéticas para me tornar algo mais eficiente em campo de batalha. Eu era um soldado, assim como muitos outros.
- A Terra... você tem algo a ver com o que aconteceu na Terra?
- Sim, mas não seja tão ingênuo, Dr. Eu não fui o único. Eramos mais de 15 milhões. Fomos soltos no meio do território inimigo, onde começamos a comer todos os que víamos pela frente, até os ossos. Seja lá o que tenha ocorrido conosco, não conseguíamos mais sobreviver com outro tipo de alimento a não ser carne humana. Em poucas semanas exterminamos os humanos no território inimigo, destruindo toda sua infra-estrutura de informação, para evitar que eles se organizassem. Quando percebemos que morreríamos de fome, usamos aviões e barcos, e nos alimentamos daqueles que nos criaram. Em meses comemos cada ser humano do planeta. Quando eles terminaram, fomos em busca dos poucos que restavam nas estações orbitais, na Lua e em Marte fingindo sermos humanos. Muitos dos nossos já haviam morrido de fome neste meio tempo. Poucos de nós conseguimos sobreviver para nos fartar com os humanos amedrontados que haviam sobrado.
- Meu Deus... por isso não haviam corpos!
- Como disse, comemos até os ossos! Nossa fome é horrível. Por fim, todos os que eram como eu pereceram. Apenas eu sobrevivi.
- Como?
- Eu era falho e fraco. Diferente dos demais, algo em mim ainda continuava humano. Meu sistema digestivo ainda podia digerir alguns alimentos, mas não totalmente. Não sou capaz de absorver os nutrientes de maneira eficaz. Estou vivendo de ração há 4 anos, desde que meu estoque de carne humana terminou.
- E como me achou aqui? - disse Quaid, tentando se livrar das amarras sutilmente.
- Fui até as docas sob o Pacífico. Quando deixei a doca meses antes de seu retorno à Terra, havia um depósito de carne humana de alguns poucos irmãos que resistiram. O busquei na esperança de encontrar algo para me alimentar. Não achei nada, mas percebi que a bela e grande Kashimire não estava mais atracada, e no lugar dela, havia a sua nave... esta nave!
- A Orion Hawk 7... estamos a bordo dela?!
- Sim... e nos bancos de dados dela, vi todos os registros sobre este planeta. Pensei que seria uma questão de tempo até que você ou algum humano que tivesse escapado viessem para cá, então decidi viajar até aqui. E esperei, preparando o ardil no qual você caiu.
- Ardil? Você fala do casebre...
- Sim... mas falo principalmente daquele velho controle remoto. Eu sabia que a curiosidade do ser humano levaria alguem até o casebre, mas apenas a estupidez poderia fazê-lo cair em minha emboscada. O que melhor para despertar a estupidez humana do que um botão grande e vermelho, Dr. Lazarus? Um botão que praticamente pede para ser apertado!
- ...
- Veja, estou enfraquecido demais para conseguir lutar contra um humano e pegá-lo com minhas próprias mãos, como fazia tão facilmente no passado. Tive que recorrer a este estratagema. E eu fico muito, mas muito feliz mesmo que ele tenha funcionado!

- A criatura urrou de maneira grave e bestial, abrindo sua boca pútrida e deixando escorrer dela uma saliva grossa e esbranquiçada como leite estragado. Avançou em direção a Quaid, que tentava se soltar desesperadamente sem nenhuma eficiência. Percebia agora que aquele monstro de fato havia recebido treinamento militar, porque quanto mais ele tentava se soltar, mais apertado o nó em volta de seus pulsos ficava.

Foi então que ele soltou um grito horrível devido à mais intensa dor que já sentira em toda sua vida. A criatura cravou seus dentes, afiados como farpas de aço, em sua coxa esquerda. A criatura havia arrancado um pedaço considerável de carne, e o sangue brotava fartamente da ferida exposta.

A criatura fechou os olhos deliciando-se doentiamente com o sabor da carne de Quaid, gemendo de prazer ao mesmo tempo em que derramava algumas poucas lágrimas dos olhos. O sangue escorria de sua boca e caia sob seu peito e sua barriga enrrugadas, que tinham a pele repuxada, grossa e ressecada. Quando se precipitou contra Quaid uma vez mais, a criatura lhe arrancou um pedaço ainda maior da mesma coxa. A dor fez com que Quaid perdesse os sentidos uma vez mais, e ele se viu cercado pela escuridão. Pode ouvir o som da criatura mastigando sua carne, mas este foi ficando cada vez mais baixo, até desaparecer.

Quando despertou, Quaid ficou espantado por ainda estar vivo. Estava deitado, atado a uma mesa cirúrgica de metal, e sentia uma dor lascinante na coxa devorada. Viu com dificuldade que havia uma sonda venosa atada a seu braço, e pensou que um milagre havia ocorrido. Quem sabe, alguém tivesse aparecido e lhe salvado no último instante...

Ele então ouviu a porta daquele local se abrir e alguem entrar. Quaid gritou de pânico novamente e chorou de desespero e agonia ao ver que era a mesma criatura, com o rosto ainda todo sujo com seu sangue. Ela ria e parecia mais vivida do que antes. Sua pele estava melhor, assim como sua saliva estava mais transparente. Suas pupilas não estavam mais dilatadas, e ele parecia ter experimentado uma melhora significativa de sua saúde.

Quaid conseguiu olhar para sua perna e, horripilado, viu que a criatura havia devorado quase que toda a carne da coxa para baixo. Mas percebia que, de alguma forma, a carne estava se regenerando, e rapidamente. Olhou então para a criatura, que lhe disse:

- Não pense que será tão fácil assim, Dr. Lazarus. Enquanto sentia fome na viagem até aqui, tive muito tempo para pensar sobre tudo isso. Você provavelmente é o último ser humano vivo, e se eu te comer de uma vez, te matando no processo, vou ficar sem alimento.
- ... o que você está fazendo!!! - disse Quaid com os dentes cerrados, devido à dor da regeneração e ao pânico diante de sua situação.
- Estou te alimentando com a comida que não posso comer por meio desta sonda venosa, que me manteve vivo até aqui ao me proporcionando uma quantidade mínima de nutrientes para sobreviver... mas ela vai lhe nutrir muito melhor do que a mim, posso lhe garantir isso. Também estou regenerando sua carne, tendão e nervos com uma droga bastante complexa que encontrei em minhas andanças pelo planeta Terra. Este catalizador metabólico é uma tecnologia médica de reconstituição de tecido que estava guardada a 7 chaves nos laboratórios de uma grande indústria farmacêutica a pelo menos 150 anos. Como pode ver, era boa demais para ser posta no mercado, mas eu quero te dar o melhor! Você estará novo em folha em menos de 5 horas, quando então poderei te comer mais um pouco!
- Não não não não não não... - dizia Quaid, já perdendo sua sanidade.
- E depois de comê-lo de novo, vou te alimentar e curar novamente, para comê-lo de novo, e de novo, e de novo... até aonde eu precisar ou você aguentar. E acredite: vou dar o meu melhor para que você aguente por muito tempo...

Quaid havia entrado em choque uma vez mais. A criatura não se importava, desde que ele continuasse vivo. Lazarus Quaid nem mesmo gritou de dor quando a criatura, ainda faminta, não conteve sua fome furiosa, e visivelmente descontrolada, começou a devora sua outra coxa, que se regenerava a cada mordida dada. Seu corpo permanecia vivo, ao menos por enquanto. Mas sua mente, cuja imagem daquele maldito controle remoto foi a última coisa que processou, morrera bem ali, na enfermaria da Orion Hawk 7.

Originalmente escrito em 16/02/2008

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